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Comentários ao Pacote Anticrime (4): o juiz das garantias e o destino do inquérito policial

O inquérito policial não é uma atuação de competência do JDG.

24/08/2020 às 09h30, Por Maylla Nunes

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Por Vladimir Aras 

O juiz das garantias criou mais uma falsa polêmica: a de que os autos do inquérito policial não mais instruiriam a ação penal. Discordo da interpretação já agora corrente de que, após a Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime), o inquérito policial (IPL) não chegará mais ao conhecimento do juiz de instrução e julgamento (JIJ).

Há pelos menos sete motivos que diviso no caminho oposto, que dizem respeito ao modelo investigativo adotado no Brasil e a particularidades da admissibilidade e valoração das provas no nosso processo penal.

A definição desses pontos foi adiada já que o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, deferiu medida cautelar na ADI 6.298 proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra vários dispositivos da Lei 13.964/2019. Na ação, a AMB pediu ao STF que declare que os novos artigos do CPP sobre o juiz das garantias são “normas de eficácia limitada que dependem da edição de outras leis ordinárias, de iniciativa dos tribunais, de sorte a permitir a efetiva criação”. Temos aqui uma moratória, sem garantia de funcionamento.

A correta interpretação do artigo 3º-C do CPP

São várias as razões para afastar a ideia de que o inquérito policial ficaria acautelado no cartório de apoio ou juiz de garantias e não seria mais incorporável à ação penal. Vamos a elas:

1º) O §3º do artigo 3º-C do CPP (Lei Anticrime) não tem a extensão pretendida.

“§3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.”

Não se pode ler no novo §3º do artigo 3º-C do CPP uma vedação de juntada do inquérito policial à ação penal. A meu juízo, o que aí está escrito é que os autos adicionais ou suplementares formados para propiciar decisões do juiz de garantias (JDG), nas matérias específicas dos 18 incisos do artigo 3º-B do CPP — que tratam da competência desse juiz —, em regra não serão apensados ao inquérito ou ao procedimento investigatório criminal. E, por isso, não serão apensados à denúncia.

O inquérito policial não é uma atuação de competência do JDG. Este juiz não investiga. É um procedimento administrativo presidido por delegado de Polícia e, portanto, de atribuição desta autoridade do Poder Executivo, nos temos da Lei 12.830/2013.

Se o legislador tivesse querido mencionar o inquérito policial no §3º do artigo 3º-C do CPP, tê-lo-ia feito expressamente, como fez noutros dispositivos da lei. Assim, na verdade, a leitura correta indica que o primeiro período do §3º do artigo 3º-C do CPP exclui o inquérito policial da regra que vem em seguida.

Os autos a que o artigo 3º-C, §3º do CPP se refere são os expedientes que exigem manifestação do JDG e que deverão ser formados especificamente para isso, conforme a tabela de códigos do CNJ, tendo em conta o novo artigo 3º-B do código. Não há normalmente interesse nem razão para juntar à ação penal os autos abertos para as providências dos incisos I, II, III, IV, VI, VIII, IX, X, XII, XV, XVI, XVII, a cargo do JDG. Se algum elemento neles contido for necessário à acusação ou à defesa, pôde-se consultá-los para cópia e juntada.

Todavia, há outros autos de competência do JDG, que sempre devem acompanhar a ação penal, devido à ressalva do §3º e à necessidade probatória, a saber:

VII – decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;
XI – decidir sobre os requerimentos de:
a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;
b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;
c) busca e apreensão domiciliar;
d) acesso a informações sigilosas;
e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;
XIII – determinar a instauração de incidente de insanidade mental;

Logo, os autos do inquérito policial continuam a acompanhar a ação penal, se o Ministério Público usá-lo para formular a denúncia, que será recebida pelo juiz de garantias. Ademais, também serão juntados aos autos da ação penal os outros feitos judiciais expressamente mencionados pelo §3º do artigo 3º-C:

a) os autos que contenham documentos relativos a provas irrepetíveis autorizadas pelo juiz de garantias;

b) os autos com o resultado de medidas de obtenção ou antecipação de provas decretadas pelo juiz de garantias.

Estes feitos serão apensados em apartado à ação penal. Não há proibição de envio do inquérito policial ao juiz da causa (JIJ), no qual haverá outras tantas informações e provas que não terão passado pelo crivo do juiz de garantias, já que são de “competência” de autoridades investigativas (Polícia e MP) ou de outros órgãos públicos.

Não se deve olvidar que um número relevante de ações penais funda-se em autuações de autarquias ou apurações de outros órgãos estatais não policiais. Tais elementos informativos podem embasar pedidos cautelares ou de antecipação de provas, que exijam decisão do JDG. Mas também não ficarão em seu poder. Suas decisões serão adotadas nos expedientes formados pelo peticionante.

Além desses autos, o JDG formará expedientes próprios para o controle de inquéritos com indiciados presos.

2º) os autos do inquérito policial sem investigado preso estarão sujeitos a tramitação direta entre a Polícia e o Ministério Público, sem intervenção do JDG. Não é de sua competência fazer a triangulação, meramente cartorial, entre a Polícia e o MP, no controle de prazos de inquéritos com indiciados soltos. O inciso IV do artigo 3º-B determina que o JDG deve ser “informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal”, ao passo que o inciso X estipula que lhe compete “requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação”. Os dois dispositivos deixam claro que o inquérito continuará com o delegado de Polícia, cuja atribuição para presidi-lo está prevista no CPP e na Lei 12.830/2013.

O JDG só intervém nos inquéritos com indicados presos, para controle do prazo da prisão. Conforme o inciso VIII do artigo 3º-B do CPP compete-lhe “prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial”. Intervém também, em qualquer caso, nas matérias de sua competência, isto é, naqueles marcadas com cláusula de reserva de jurisdição, sobretudo quando necessária a decretação de medidas cautelares ou a autorização de meios especiais de obtenção de provas.

Os autos dos inquéritos policiais com investigados soltos tramitarão entre a Polícia ou no Ministério Público, e não ficarão com o JDG. Lembremos que não há mais sequer intervenção judicial no arquivamento desses procedimentos, como na antiga redação do artigo 28 do CPP. Uma vez concluída a apuração, os autos serão enviados pela Polícia ao MP para (i) declinação de atribuição a outro órgão do Parquet; (ii) decisão de arquivamento e homologação obrigatória; (iii) requisição de novas diligências à Polícia; (iv) formalização de acordo de não persecução penal; ou (v) o oferecimento de denúncia para instauração de ação penal.

3º) O §1º do artigo 3º-C do CPP diz expressamente que “Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento.”

A competência do JDG terá cessado com o recebimento da denúncia ou queixa (artigo 3º-C combinado com o artigo 399 do CPP), e o JIJ deverá ter acesso ao IPL, se nele houver “questões pendentes” (a decidir). Estas questões podem referir-se a medidas investigativas em curso, interceptações telefônicas, ações controladas, medidas cautelares reais ou pessoais, etc.

Naturalmente, decidi-las, o JIJ deverá ter acesso a tudo o que for necessário para a formação de sua convicção e agirá como se juiz de garantias fosse, com competência funcional ampliada.

4º) O §2º do artigo 3º-C do CPP vai na mesma linha do dispositivo anterior, quanto ao conhecimento de elementos informativos reunidos na investigação criminal.

As decisões do JDG “não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso” no prazo de 10 dias. É o que diz esse § 2º.

O juiz de instrução e julgamento (JIJ) terá, portanto, acesso ao IPL e aos expedientes formados na etapa anterior para reexaminar a necessidade de manter ou não as medidas cautelares reais ou pessoais decretadas pelo juiz de garantias (JDG). Estas decisões obviamente se fundam em regra nas provas ou elementos informativos obtidos no IPL, dele constantes ou dele extraídos para a formação de expedientes, abertos por petição do Ministério Público ou por representação policial, para decisão pelo juiz de garantias, sempre que existir cláusula de reserva de jurisdição.

Não se pode pretender que o JIJ reavalie os requisitos cautelares às cegas.

5º) Há regra expressa no artigo 12 do CPP sobre o destino do inquérito policial: “O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”.

Tal artigo não foi revogado pela Lei Anticrime. O projeto do novo CPP (PL 8045/2010), que também traz a figura das juiz de garantias, mantém esta mesma regra específica sobre o destino que se deve dar ao inquérito: segue com a denúncia.

6º) quanto à apreciação e valoração da prova, o artigo 155 CPP merece atenção porque tampouco foi revogado pela Lei 13.964/2019:

“artigo 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”.

O advérbio “exclusivamente” grita ao intérprete. O juiz de instrução e julgamento (JIJ) pode também valer-se da prova colhida no inquérito policial (“elementos informativos”) para proferir sua decisão de mérito. E, naturalmente, para isto, deverá ter acesso ao inquérito policial e aos apensos formados para decretação de medidas cautelares pelo JDG ou para a produção antecipada de provas ainda na fase do inquérito, ou ainda aos autos dos meios especiais de obtenção de provas.

O artigo 3º-C do CPP deve ser lido de modo a compatibilizar-se com o artigo 155 do CPP, que faz referência expressa aos “elementos informativos colhidos na investigação”, isto é, àquilo que está encartado nos inquéritos e nos PICs. Não há como negar que o juiz da causa pode usá-los e valorá-los.

7º) Note-se que as regras sobre os autos de competência do juiz de garantias foram desenhadas tendo em mira inquéritos e processos físicos. O texto da Lei 13.964/2019 é, neste ponto, ultrapassado. O legislador pareceu não considerar a existência de autos e peticionamento eletrônicos. Com o processo digital, os autos de um inquérito ou de um medida cautelar podem estar “na nuvem”, e a consulta a eles será online, com acesso amplo pelos sujeitos processuais. Isso tem implicações, inclusive para reduzir a clausura que alguém possa querer impor ao JIJ.

Conclusão

O isolamento do juiz do julgamento não resulta de modo algum da Lei Anticrime. Pode ser um desejo de alguns juristas, mas a isto não se chegou nesta reforma. Tal desiderato torna-se ainda menos factível tendo em vista a natureza eletrônica de muitos autos processuais, inclusive o inquérito policial eletrônico (ePol).

A leitura correta do §3º do artigo 3º-C do CPP nos leva a admitir tanto a juntada dos autos do inquérito policial à ação penal quanto o apensamento das matérias decididas pelo juiz de garantias com base nos incisos VII, XI e XIII do artigo 3º-B do CPP, que foram expressamente ressalvados pelo parágrafo.

O inciso XIII faz referência ao incidente de insanidade mental. Segundo o artigo 153 do CPP, tal incidente “processar-se-á em auto apartado, que só depois da apresentação do laudo, será apenso ao processo principal.” Logo, ele continua como base documental da ação penal.

Em suma, a ação penal proposta pelo MP poderá ser acompanhada (i) do inquérito policial — e também do PIC; e (ii) dos autos a que se referem os incisos VII, XI e XIII, do artigo 3º-B do CPP, sem prejuízo de outras peças de informação.

Os demais autos com matérias de competência do juiz de garantias “ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do MP e da defesa”. Para quê? Para mera consulta? Não. Para o exercício dos direitos probatórios, já que as partes podem juntar documentos no curso da ação penal (artigo 231, CPP).

O IPL fica com os órgãos competentes (Polícia e MP), que devem informar ao juiz de garantias sua instauração (artigo 3º-B, inciso IV, CPP). Se houver diligências de investigação que dependam de decisão judicial, cópias das peças necessárias formarão novos autos que serão apreciados pelo JDG e ficarão na serventia desse juízo. Os resultados serão, todavia, encartados ao inquérito.

Poderíamos ter uma alternativa à juntada integral dos inquéritos (artigo 12, CPP): a apresentação ao juiz apenas das provas úteis ao julgamento, sem peças desnecessárias, como carimbos, autuações, atos atinentes a ausências, certidões de acúmulo de serviço etc, sem conteúdo probatório. Os autos das ações penais ficariam menos poluídos, facilitando o trabalho de todos os sujeitos do processo penal.

Por ora, esperemos o julgamento da ADI 6298. Mas aqui onde estamos pode-se concluir que o §3º do artigo 3º-C do CPP não chega até onde se pensa ou se quis.

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