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Um Coaf manco

Com isto o Brasil passou à situação de adimplente em relação aos seus compromissos internacionais nos foros especializados em políticas globais contra a lavagem de dinheiro.

14/07/2020 às 11h30, Por Maylla Nunes

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Por Vladimir Aras 

Uma emenda de autoria de um deputado federal gaúcho, na votação da medida provisória 893/2019, deixou o COAF manco. A supressão de texto essencial atingiu duas das competências da unidade de inteligência financeira (UIF) brasileira para prestar informações sobre movimentação financeira de terroristas ou de entes terroristas e sobre a proliferação de armas de destruição em massa.

Seguramente, o Brasil será bombardeado de críticas na próxima reunião do Grupo de Ação Financeira (GAFI) em fevereiro de 2020, com mais essa debilitação do COAF, um órgão que neste ano de 2019 sofreu um desagradável pingue-pongue político, sendo jogado daqui para ali, dentro da estrutura do Poder Executivo, embora estivesse bem instalado na pasta da Justiça.

Conforme os padrões universalmente aceitos, as UIFs têm de ser capazes de coletar e disseminar inteligência financeira sobre lavagem de dinheiro (AML), financiamento do terrorismo (CFT) e proliferação de armas de destruição em massa (WMD). As siglas referem-se às expressões em inglês e compõem o jargão internacional nesta matéria.

O texto original da MPv 893/2019 previa no art. 2º que o COAF teria atribuição para produzir relatórios sobre os três temas usuais no conjunto de competências das unidades de inteligência financeira.

Tem sido assim desde 1998 quando entrou em vigor a Lei de Lavagem de Dinheiro e mais plenamente desde 2012, com a primeira grande reforma por que passou essa legislação, promovida pela Lei 12.683/2012.

Mas foi sobretudo com a Lei 13.260/2016 e com a Lei 13.810/2019, que o modelo AML/CFT/WMD adotado no Brasil se completou. A lei de 2016 criminalizou o terrorismo e seu financiamento, e a lei de 2019 dispôs sobre o cumprimento de sanções impostas por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas a pessoas físicas e jurídicas investigadas ou acusadas de terrorismo, de seu financiamento ou de atos a ele correlatos.

Com isto o Brasil passou à situação de adimplente em relação aos seus compromissos internacionais nos foros especializados em políticas globais contra a lavagem de dinheiro.

No entanto, em meados de 2019 veio aquela fatídica decisão do ministro Dias Toffoli, no RE 1.055.941/RJ, felizmente superada pelo pleno do STF meses depois. E então, no fim do ano, chegou-se a esse revés legislativo. No texto agora aprovado pelo Congresso Nacional, relativo ao projeto de conversão da MPv 893/2019, a boa redação do art. 2º, §1º desapareceu. Ali se dizia que o COAF “seria responsável por produzir e gerir informações de inteligência financeira para a prevenção e o combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa e promover a interlocução institucional com órgãos e entidades nacionais, estrangeiros e internacionais que tenham conexão com a matéria.”

Este dispositivo foi alterado e passou a ser o art. 3º, inciso I, que diz ser atribuição do COAF “produzir e gerar informações de inteligência para a prevenção e combate à lavagem de dinheiro”.

Nada se diz sobre financiamento do terrorismo, um crime previsto na legislação brasileira desde 2016, nem sobre a proliferação de armas de destruição em massa, que são, por exemplo, artefatos adequados para ataques químicos, biológicos, radiológicos e nucleares (QBRN), capazes de aniquilar incontável número de vidas e produzir catástrofes socioeconômicas ou ambientais.

Como visto, a redação final da nova lei resultou da aprovação da Emenda 68, de autoria do deputado Paulo Pimenta (RS), que se baseou em premissas equivocadas. Na justificação de sua proposta, o parlamentar gaúcho alegou que a MPv:

Acrescenta como novas atribuições: ‘ o combater ao financiamento do terrorismo” e “o combate ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa”. Trata-se de atribuições para as quais este tipo de órgão não tem expertise para atuar. A experiência internacional, mostra que órgãos como o COAF são de inteligência no âmbito das transações no mercado financeiro. Ao ampliar seu escopo dessa forma, se está direcionando o órgão para uma atuação de cunho policial em uma instituição que atua na regulação do mercado financeiro. O combate ao terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa não cabem em uma instituição com as características do COAF. Aliás, não há esse escopo de atuação nos órgãos similares em outros países.

Uma breve consulta às 40 Recomendações do GAFI mostraria que as UIFs existentes no planeta devem ocupar-se desses três eixos no campo da prevenção de ilícitos. A seção C do documento revisado em 2012 abrange as Recomendações 5 a 8, que tratam exatamente do financiamento do terrorismo e do financiamento da proliferação, prevendo obrigações regulatórias para os Estados partes. De igual modo, a Recomendação 29 exorta os países membros a “estabelecer uma unidade de inteligência financeira (UIF) que sirva como um centro nacional de recebimento e análise de: (a) comunicações de operações suspeitas; e (b) outras informações relevantes sobre lavagem de dinheiro, crimes antecedentes e financiamento do terrorismo, e de disseminação dos resultados de tal análise”.

De igual modo, a diretriz 10 dos Princípios do Grupo de Egmont sobre Intercâmbio de Informações entre Unidades de Inteligência Financeira expressamente conclama os países membros a assegurar que suas UIFs “have an adequate legal basis for providing co-operation on money laundering, associated predicate offences and the financing of terrorism.”

Assim, a nova Lei do COAF, se sancionada desta forma, retirará atribuições de nossa UIF para atuar na prevenção do financiamento do terrorismo e da proliferação dessas armas de enorme letalidade. Esse foi o objetivo expressamente declarado pelo legislador na votação na Câmara dos Deputados, pois isso “não seria” de competência de unidades de inteligência financeira.

Este desenho afasta-se dos padrões internacionais de fevereiro de 2012 para as unidades de inteligência financeira, o que renderá uma desnecessária dor de cabeça ao Brasil no GAFI e no Grupo de Egmont, duas entidades internacionais das quais o COAF participa. O GAFI, que reavaliará todo o sistema anti-LD do Brasil em 2020, deixa claro no referido documento que todos os países devem adotar “medidas efetivas para que seus sistemas nacionais de combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e da proliferação estejam em conformidade com as Recomendações do GAFI revisadas.”

Não foi o que a Câmara dos Deputados fez ao aprovar a malsinada Emenda 68. O COAF foi parcialmente privado de competências essenciais.

Para garantir a atuação plena do COAF nessas três matérias – e não apenas em uma delas –, há duas opções imediatas:

i) um veto presidencial ao art. 3º do projeto de conversão da MPv 893; ou

ii) a adoção de solução por via de interpretação, com base na Lei de Lavagem de Dinheiro (LLD). Seu art. 15 dá ao COAF competência para disseminar informações sobre qualquer atividade ilícita prevista na Lei 9.613/1998. O art. 1º da LLD também cobre o financiamento do terrorismo como crime antecedente, quando conjugado com a Lei 13.260/2016.

No plano interno, tal arranjo legislativo – que alguns podem chamar de “puxadinho” legal – resolveria a situação, sem prejudicar as atividades do COAF no País.

Mas não confiemos na boa vontade da comunidade internacional em relação ao Brasil… Infelizmente, por problemas anteriores (a decisão do STF de julho de 2019 no RE 1.055.941/RJ; a demora na aprovação da lei de bloqueio de bens de entes terroristas etc) não estamos com muito crédito no GAFI e no Grupo de Egmont.

O COAF deve ter sua competência integralmente expressa na lei, o que se pode alcançar com novo projeto.

É preciso compreender que, numa sociedade globalizada, as estruturas de proteção de bens jurídicos relevantes estão cada mais integradas. Não se pode mexer numa instituição aqui sem produzir reflexos ali, ainda mais quando se está diante de evidente descumprimento de compromissos internacionais do País. É hora de pensar para além das paróquias e das províncias. O financiamento do terrorismo é um problema global, e depende do empenho de todos os países para ser eliminado ou reduzido. Um COAF manco não será muito útil para este fim.

[Artigo originalmente publicado no Jota em 21 de dezembro de 2019]

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