Bahia

A alegre e poética história de Teco, o rei do boteco serrinhense

Teco é um sujeito muito alegre, que atende ao freguês sempre com o cabelo de índio mal penteado e proeminente barba, meio esbranquiçada pelos seus 58 anos bem vividos.

29/03/2020 às 08h06, Por Rachel Pinto

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Valdomiro Silva

Especial para o Acorda Cidade


A cidade de Serrinha, terra da vaquejada, a maior do Brasil, é também rica em outras várias tradições. Na Semana Santa, por exemplo, revive a saga de Jesus e sua crucificação, em evento que atrai fiéis do Brasil inteiro.

A cidade tem um comércio forte, carro-chefe da sua economia. Este é um segmento em que personagens se destacam ao longo da trajetória da cidade, desde Tuíca, das Lojas Cruz; Evandro, da Eletrosom; Pedro, do Armarinho; Eliseu, do supermercado.

Em cada um deles, uma história, marcada na memória dos serrinhenses por sua singularidade. Alguns já se foram, restando deles apenas as lembranças. Outros seguem, como Eliseu, destaque na imprensa da Bahia e alvo de reportagem do Acorda Cidade, no fim de 2019, por ter tirado férias pela primeira vez na vida, após mais de 40 anos de batente em seu estabelecimento que se tornou famoso na avenida Manoel Novaes.

A lista de comerciantes vitoriosos e que chamam a atenção da comunidade serrinhens não para de crescer. Um dos que estão se integrando a seleta relação de empreendedores que atingem o imaginário popular é Teco, o rei do boteco.

Batizado Hariélio Carvalho, o filho de seu Arivado e dona Helena tornou-se personalidade, em Serrinha, por seu jeito inconfundível de atender, em quase um quarto de século vendendo cerveja.

O "Boteco do Teco", localizado distante da Morena Bela, point do entretenimento local, não é mais que um pequeno prédio, anexo da residência onde mora com a esposa e fiel escudeira no negócio, a faz-tudo Célia. Um pequeno ponto, mas… só que não. Ninguém tem mais clientes do que ele, na cidade.

– É um cara sensacional, que atende sempre com um sorriso, um bom papo. Além de oferecer qualidade e ótimo preço. Serrinha inteira vem aqui no boteco comprar cerveja e prosear com ele – comenta o cliente fiel e amigo Geovani, dos raros em quem Teco confia vender fiado.

O sucesso é tamanho que o negócio está virando griffe. Os próprios filhos William e Hariel, criaram o Empório Serrinha. É um estilo de negócio diferente, especializado em cerveja artesanal. Mas a receita para atrair uma clientela fiel tem o "made in" Boteco do Teco. Os filhos seguem os passos do pai.

 

Faz da vida uma piada

Teco é um sujeito muito alegre, que atende ao freguês sempre com o cabelo de índio mal penteado e proeminente barba, meio esbranquiçada pelos seus 58 anos bem vividos. O ex-lateral direito meio técnico, meio grosso, do futebol de várzea no bairro Rodagem, onde passou infância e adolescência, tem coração dividido: na Bahia rubro-negro (Vitória), no Rio alvi-negro (Botafogo). Seus amigos não sabem como ele consegue manter o humor, torcendo por dois times de tamanha aridez de títulos importantes.

Como atesta Zé Durval, amigo de muitos anos, mas cliente novo na casa, fazer piada de quase tudo é a forma com que Teco enfrenta as dificuldades – desde as derrotas dos seus dois times aos problemas econômicos e políticos no país que tanto lhe incomodam. É ferrenho crítico de gestões desatentas com o povo carente. Até já pensou em disputar a vereança, projeto que abortou no nascedouro.

"Seu Teco", como é também conhecido, nao é apenas um grande vendedor de cervejas. Também tem talento artístico, aflorado ainda em sua juventude, quando contemplava seus amigos mais próximos com cartões de boas festas personalizados. Jamais comprava um em livraria. As mensagens eram feitas de próprio punho, o que encantava a todos os que as recebiam dias antes do Natal.

Mas é na poesia e no poema, que Teco se realiza de verdade. Este, aliás, era o recurso mais proativo, em seus tempos de conquistador. Não foram poucas as meninas dos anos 70 que se encantaram por seus românticos escritos. Nos tempos em que a carta era um importante meio de se dirigir a uma garota (geralmente um amigo fazia a entrega da "correspondência"), o galanteador Hariélio raramente perdia uma cantada, que executava com a sua caneta, quase nunca usando a voz.

"Ele gastava muita tinta de caneta para escrever páginas e mais páginas de poemas, quando se encontrava apaixonado", relembra Berguinho, grande amigo de infância. Quando não era correspondido, ou ao levar um fora, mais ainda florescia a criatividade e a vontade de escrever, atesta o amigo-irmão.

Raimundinho, outro amigo de adolescência e seu colega no Ginásio Rubem Nogueira, diz que já atuou como "revisor" de poemas do Seu Teco. Certa feita, o sedutor poeta escreveu três páginas do caderno espiral para a irmã de uma estudante, por quem ele se apaixonou. Tanta intensidade não sensibilizou a jovem. "Ele sofreu muito", relembra o "auxiliar", hoje residindo em Brasília.

 

Gostar de gente, o segredo

Sem dúvida, o jeitão largado e pouco preocupado com as durezas do cotidiano é o segredo do bom humor quase inabalável do rei do boteco. "Deixo a vida me levar", diz ele, plagiando o sambista famoso. "Enxergo a caminhada como um longo e delicioso banho no lindo lago do amor", acrescenta, outra vez recorrendo a estrofe de uma linda canção.

Sobre o trabalho e o sucesso do Boteco, decifra de forma simples: "basta gostar de gente. Cada pessoa nova que procura pela minha cerveja é mais um amigo de prosa que ganho. Quando você faz do seu cliente uma fonte de de amizade, com carinho e respeito verdadeiros, atendê-lo se torna um grande prazer".

O ex-gerente de loja da antiga Cesta do Povo diz que aprendeu ali a lidar com gente. "A experiência me fez chegar aqui com um espírito ainda mais voltado ao próximo".

 

Coronavírus e a saudade

Casado, pai e avô, Teco meio que aposentou a sua Bic azul escrita fina. Dona Célia, companheira de quase quatro décadas, reclama: "só fez poemas para mim quando quis me conquistar. Nunca mais". Na verdade, Teco continua a escrever. Não tanto como antes, mas, vez em quando, ele junta algo a sua coletânea de centenas de poemas, agora em versão digital.

Foto: Arquivo Pessoal |O comerciante-poeta Hariélio, o Teco, com a esposa, Célia, e a afilhada Karen (centro)

 

Retrata os diversos cenários do cotidiano, continua um excelente observador, que consegue reproduzir, em seus poemas, os momentos marcantes deste nosso tempo tão confuso.

Agora mesmo, deixa o coração falar por ele, ao rascunhar a dor que emana do peito em razão da pandemia. O coronavírus fez o poeta "sacar a palavra", com quem sempre troca intimidades, para refletir sobre o sentimento de milhões de brasileiros, ao mesmo tempo impressionados, ao mesmo tempo chocados, com o drama em que nos enfronhamos e dele tentamos nos despir.

 

Quarentena e saudade, o chorar do boteco

 

A buzina me chamava

A gritaria, era pelo meu nome

Ah, quanta saudade!

E o buteco em quarentena

Ao fregues que insiste, aprendi a dizer não…

Como antes não sabia…

Tudo por um decreto perverso, em meio à agonia

Tudo por um vírus chamado corona

O seu número, 19, para sempre marcado em minha memória

Uma doença importada, meu senhor!

Que chega até nós por quem tem dinheiro, viaja o mundo…

E daz de todo mundo transmissor

Fui 'mandado' prá dentro de casa

Impedido de fazer o que mais amo

Vivemos mais que um surto, um terrível susto

Maior ainda a saudade dos amigos, a bater no peito

Quanta falta do papo sem compromisso aqui no passeio…

E o que nos resta?

Tanta invenção… o que fazer?!

Tv… Pipocas… é tudo que se faz

Afinal, Quarentena é
vontade de comer

Assistir e ver os números crescendo

Saber quantos tem pra morrer!

Ah, agonia danada…

Tantos filmes, séries… nem consigo mais ver

É choque de realidade!

Bateu saudade do meu povo lá de baixo

Do carro antigo, azul, placa de fora

Saudade do bom dia do vizinho…

Saudade do dia a dia, do povo que passa

Saudade da minha cadeira amarela

Esta, minha grande companheira

Saudade das coisas que só eu gosto

Só eu entendo!

Saudade dos que vinham em busca de cervejas

Quantos, aqui, apareciam para "se" abastecer


Saudades do meu cochilo diário

Fechar os olhos e dormir, na porta, sentado


Estou cheio!

Não da família, ela é uma bela companhia

Como enfrentar o costume?

É algo tão forte, desses anos todos…

Abrir todo dia, de domingo a domingo, o divertido buteco

Saudade do sábado e sua feira livre…

Do meu velho, e da minha velha, que não posso visitar

Saudade até das caixas…

Do botar e do tirar

Saudade do povo dos 13…

Do sapinho, que passa para brincar

Do menino catador, por não ter agora nada para lhe dar

Ah, sinto tanta saudade, dá vontade de chorar…

Fico por aqui, pois sao 23 e três anos de estórias pra contar

Até a quarentena acabar

Da minha afilhada Aly, a frase de terminar:

Você é velho. Fique no seu lugar!

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