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A lição de John Stuart Mill sobre liberdade de expressão

A tradição de louvar a liberdade de expressão vicejou na Inglaterra e nos Estados Unidos graças a filósofos como Stuart Mill.

27/03/2020 às 11h46, Por Maylla Nunes

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Por Vladimir Aras

O filósofo britânico John Stuart Mill (1806–1873) sustentava que, sem a plena liberdade, não pode haver progresso científico, jurídico ou político. A livre discussão das ideias concorre para a evolução das sociedades humanas.

Na sua obra “A Liberdade”, de 1859, Stuart Mill professou que a livre expressão das ideias, falsas ou verdadeiras, não deve ser temida e que o direito de opinião não pode ser suprimido nem cerceado por considerações econômicas ou morais, mas somente quando cause dano injusto.

A tradição de louvar a liberdade de expressão vicejou na Inglaterra e nos Estados Unidos graças a filósofos como Stuart Mill. E firmou-se. No caso Garrison v. Louisiana (1964), a Suprema Corte americana reverteu a condenação por difamação imposta a Jim Garrisson, que era promotor em Nova Orleans.

Em entrevista à imprensa, Garrison criticou a ineficiência, a leniência e o excesso de férias de juízes locais, práticas que, a seu ver, dificultavam os esforços do Ministério Público na luta contra a criminalidade na sua comarca. Sim, já vimos algo parecido em STF v. Deltan.

Porém, nos EUA, diferentemente do que se passou no CNMP, a Suprema Corte entendeu que a manifestação do promotor Jim Garrison merecia proteção da Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos e se encaixava no precedente firmado pouco antes, no caso New York Times vs. Sullivan, de 1964.

Ali, a Suprema Corte limitou as sanções cabíveis pelo exercício do direito de crítica à conduta de autoridades públicas, só admitindo sua responsabilização criminal quando a pessoa que a expressar tiver consciência de sua falsidade ou mostrar-se seriamente indiferente quanto à sua veracidade.

O caso Garrison mostra que não se pode punir quem expresse críticas razoáveis a autoridades públicas. A proteção à reputação individual cede a um interesse público superior, assegurado pela Constituição: a difusão da verdade ou daquilo que se crê ser a verdade e que consiste em uma opinião.

No contexto do caso New York Times vs. Sullivan, cabe ao ofendido provar que o autor da opinião questionada agiu com malícia de enganar, estava ciente da mentira e lhe foi indiferente, ou teve a intenção deliberada de mentir, para que se admita sua responsabilização civil.

Em 2014, em editorial comemorativo dos 50 anos do caso, o New York Times registrou que “the ruling was revolutionary, because the court for the first time rejected virtually any attempt to squelch criticism of public officials — even if false — as antithetical to the central meaning of the First Amendment.”

Segundo a jurisprudência cinquentenária da Suprema Corte dos EUA, há um “profundo compromisso nacional com o princípio de que o debate de temas de interesse público deve ser desimpedido, robusto e amplo, podendo incluir ataques veementes, cáusticos e por vezes desagradáveis à Administração Pública e aos governantes”.

Toda pessoa pode ser criticada ou contrastada quando emitir uma opinião, não importa se mais ou menos ácidas. Não é preciso concordar com elas, mas ideias não devem ser cerceadas. Abusos na expressão da opinião podem e devem ser punidos, mas quando de fato haja abusos, isto é, quando os limites da crítica forem ultrapassados, quando se converterem em calúnias e difamações ou em incitação de condutas violentas contra interesses de outros indivíduos.

Dito isto, devemos perceber que a restrição à liberdade de expressão de juízes e membros do Ministério Público deprime o debate público sobre a eficiência ou ineficiência do sistema de justiça, tema que interessa a todos os cidadãos. A opinião daqueles que vivenciam essa realidade é muito valiosa para ser suprimida do espaço público. Por isto mesmo, diretrizes globais e regionais sobre a conduta profissional de juízes e membros do MP reconhecem que os integrantes de tais carreiras devem ter sua liberdade de expressão assegurada.

Entre os “Princípios Orientadores da Função dos Magistrados do Ministério Público”, aprovados no 8º Congresso das Nações Unidas para Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Havana em 1990, está o reconhecimento do direito de livre expressão do pensamento.

Diz a Regra 8: “Os membros do Ministério Público têm, como os demais cidadãos, liberdade de expressão, de crença, de associação e de reunião. Têm o direito de tomar parte em debates públicos sobre a lei, a administração da justiça e a promoção da proteção dos direitos do homem”.

Ser a favor da liberdade de expressão significa tolerar a livre emissão e circulação de opiniões que desprezamos ou das quais seriamente discordamos. Como Stuart Mill anteviu, o debate público de ideias gera saudável contraditório que ajuda a promover a evolução política, jurídica e social. Ninguém deve ser punido por ser duro, ácido ou áspero ao criticar. Nas democracias, o direito à crítica é uma eficiente forma de controle social das autoridades. Como a História mostra, é um trágico erro punir pessoas por suas ideias e palavras, ainda que excêntricas ou incisivas ou grosseiras.

[Parte deste post recupera trechos de um texto que escrevi em 11 de maio de 2018 e que foi aproveitado pela ANPR para a defesa da liberdade de expressão de membros do MPF, sujeitos a procedimentos disciplinares no Conselho.] 

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