Causos

Procura-se “Mordido”, vivo ou morto

Vinte anos atrás, seu irmão, o então tenente da PM Itamar Pascoal, participou de um acerto de contas com um certo José Hugo Alves Júnior.

03/02/2018 às 09h28, Por Juvenal Martins

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Por Vladimir Aras

Oferecer recompensas pela captura de criminosos não é coisa nova. Jeremias Bentham (1748-1832) cuidou do tema no seu As recompensas em matéria penal, no tópico “Das recompensas por denúncia de delitos”.

No Velho Oeste norte-americano circulavam incontáveis cartazes de Wanted. Procura-se Fulano ou Beltrano, vivo ou morto. E por isso se oferecia um punhado de dólares ou milhares deles. Caçadores de recompensas (os chamados bounty hunters) cruzavam o país até as entranhas do México e do Canadá. Vários dos procurados ganharam fama lá e no resto do mundo graças a Hollywood.

Alguns dos outlaws mais famosos da história forense americana foram retratados no cinema: Jesse James, Billy The Kid, Butch Cassidy, Bonnie, Clyde e John Dillinger. Tal como nas películas, em geral, o método de pagar prêmios a informantes funciona e é usado até hoje nos Estados Unidos, no Reino Unido e em várias partes do mundo.


O desatino de José Hugo


No nosso Velho Oeste, o Acre dos anos 1990, o famigerado ex-deputado Hildebrando Pascoal valeu-se deste método para obter pistas de um crime. Vinte anos atrás, seu irmão, o então tenente da PM Itamar Pascoal, participou de um acerto de contas com um certo José Hugo Alves Júnior.

Era 30 de junho de 1996. Itamar caiu morto, e José Hugo caiu no mundo. Entrar em conflito com os Pascoal não era boa ideia, e José Hugo sabia. Hildebrando, que liderava um grupo de extermínio e estava envolvido com o tráfico de drogas, lançou uma caçada humana a José Hugo, que respondia pelo apelido de “Mordido”, porque escapara de um ataque de onça. Ele era a presa.

O ex-deputado, que fora coronel da Polícia Militar do Acre, distribuiu pelo País milhares de cartazes como o que se vê nesta página. No pôster, à moda do Wild West, Hildebrando oferecia 50 mil reais por informações que levassem à captura do assassino de seu irmão.

Duas coisas são surpreendentes. Primeiro, o valor da recompensa. Os 50 mil reais de 1996 equivalem em janeiro de 2018 a 253 mil reais, se corrigidos pelo IGP-M da Fundação Getúlio Vargas.

Segundo: a oferta de recompensa e a captura do foragido, que veio poucos meses depois, não foram organizadas pelo Estado do Acre, mas pelo próprio Hibebrando Pascoal, já que a sangrenta busca por José Hugo se tratava, como ele costumava dizer, de um “assunto de família”.

Foi na tentativa de localizar “Mordido” que o seu funcionário, Agilson Firmino, conhecido por “Baiano”, foi capturado pelo esquadrão da morte de Hildebrando e então torturado e morto no horrendo crime da motosserra.

Dos X-9 à Lei 13.608/2018, que institui um programa de recompensas a informantes

Informantes, alcaguetes e X-9 sempre existiram. Polícias de todo o mundo dependem de pistas e dados de inteligência provenientes de fontes humanas (humint) para desvendar crimes. Há alguns anos, as Polícias brasileiras passaram a usar largamente informantes remunerados na luta contra crimes graves, como sequestro, roubo, narcotráfico, estupro e homicídio. É o que corriqueiramente se vê no Rio de Janeiro, na Bahia e noutros Estados que sofrem com a violência sem controle.

O cartaz de “procura-se” emitido contra o capitão Virgulino Ferreira, o Lampião, não me deixa mentir. A cabeça do Rei do Cangaço foi posta a prêmio. Valia 50 contos de réis. Sua captura e morte ocorreram em 1938, em Sergipe, e causaram comoção nacional. Contei um pouco no texto A cabeça de Lampião.

Agora há legislação federal a respeito das recompensas, uma das formas de direito premial.

Em vigor desde o dia 10 de janeiro, a Lei 13.608/2018 regulamenta o regime de recompensas para os informantes de crimes e outros ilícitos e protege sua identidade.

Segundo o art. 4º da nova Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas competências, poderão estabelecer “formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos.”

As recompensas podem assumir várias formas. Podem até mesmo ser pagas em dinheiro, como esclarece o parágrafo único do mesmo artigo: “Entre as recompensas a serem estabelecidas, poderá ser instituído o pagamento de valores em espécie.”

Os informantes podem colaborar para a elucidação de crimes de competência federal, estadual ou distrital e de ilícitos administrativos de competência desses entes da Federação e também dos Municípios. Como se sabe, crimes violentos já são alvo de vários sistemas de “disque denúncia”, que atendem pelo número 181.

Com a inclusão dos ilícitos administrativos, o escopo da lei se amplia, o que pode repercutir positivamente na luta contra a corrupção e a improbidade administrativa, em todas as esferas de poder, do local ao nacional.

Conforme a lei, unidades federadas e a União podem criar serviços telefônicos para recebimento de notícias-crime (“denúncias”), com garantia de sigilo de identidade para o usuário, e programas de premiação, em dinheiro ou outras utilidades, para informações que levem à resolução de crimes.

Estados como São Paulo já tinham suas próprias leis. De acordo com a Lei Estadual 10.953/2001, qualquer pessoa, física ou jurídica, pode oferecer recompensa financeira para o cumprimento de mandado de prisão expedido por autoridades judiciárias paulistas. O valor ofertado como recompensa integra o Fundo de Incentivo à Segurança Pública – Fisp.

O Programa Estadual de Recompensa de São Paulo oferece até 50 mil reais a informantes que ajudem a Polícia a esclarecer crimes, identificar seus autores ou localizar foragidos da Justiça. As informações para o Programa Estadual de Recompensa podem ser fornecidas pela canal WebDenúncia, que diz usar criptografia para garantia do anonimato do noticiante.

No direito comparado, o art. 15-1 da lei francesa 95-73, de 25 de janeiro de 1995, é um bom exemplo de legislação destinada a regular programas de recompensa a informantes:

Art. 15-1. – Les services de police et de gendarmerie peuvent rétribuer toute personne étrangère aux administrations publiques qui leur a fourni des renseignements ayant amené directement soit la découverte de crimes ou de délits, soit l’identification des auteurs de crimes ou de délits.
« Les modalités de la rétribution de ces personnes sont déterminées par arrêté conjoint du ministre de la justice, du ministre de l’intérieur, du ministre de la défense et du ministre des finances. »A Lei 13.608/2018 institui programa de estímulo ao whistleblowing?

A proteção de informantes e o pagamento de recompensas a eles não se equipara a um programa de whistleblowing, que se destina a garantir o anonimato de reportantes de boa-fé e evitar que sofram represálias da entidade, empresa ou órgão onde trabalham ou com que se relacionam.

O whistleblower é normalmente um insider, isto é, costuma ser alguém que é servidor de órgão público ou funcionário de uma empresa onde a ilicitude a ser noticiada está a ocorrer.

A Lei 13.608/2018 não cuida especificamente dessas pessoas (reportantes de boa-fé), mas de um tipo genérico de informante, que inclui também indivíduos comuns do povo, sem qualquer vínculo com a entidade envolvida no ato ilícito.

Assim, a meu ver, a lei nova não institui programa de estímulo ao whistleblowing nem promove primordialmente a proteção a whistleblowers. É programa de recompensa a informantes.

Programas de proteção a whistleblowers (apitadores ou alertadores), que são uma espécie de informante, têm foco primordial no impedimento de represálias à pessoa que tem conhecimento de uma ilicitude no governo ou na iniciativa privada. A recompensa não é um elemento essencial à proteção de whistleblowers ou lanceurs d’alerte, como se diz em francês. O prêmio a este tipo de informante é dispensável; o que é essencial é o sigilo da identidade e a existência de mecanismos para prevenir ou coarctar retaliações a tal pessoa.

No Brasil, temos alguns dispositivos esparsos que cuidam de tais reportantes, como o art. 126-A da Lei 8.112/1990, introduzido em 2011:

Art. 126-A. Nenhum servidor poderá ser responsabilizado civil, penal ou administrativamente por dar ciência à autoridade superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, a outra autoridade competente para apuração de informação concernente à prática de crimes ou improbidade de que tenha conhecimento, ainda que em decorrência do exercício de cargo, emprego ou função pública.

Tratei do tema Whistleblowers, informantes e delatores anônimos, no livro A jurisprudência do STF: temas relevantes, coordenado pela professora Vilvana Zanellato, que saiu pela Verbo Juridico.

No direito internacional, essa figura é objeto do art. 33 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, concluída em Mérida em 2003 e promulgada no Brasil pelo Decreto 5.687/2006:

Art. 33. Proteção aos denunciantes. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.

No direito comparado, merece menção o Whistleblower Protection Act, de 1989, lei federal de proteção a whistleblowers que trabalhem para órgãos do governo dos Estados Unidos e que reportem ilícitos funcionais.

Contribui para a confusão conceitual na Lei 13.608/2018, a inclusão dos ilícitos administrativos como alvo desses novos disque denúncia e a referência aos Municípios, que não têm competência criminal nem atividade de polícia judiciária.

Examinar a gênese do processo legislativo lança alguma luz sobre o problema. O novo diploma é fruto do projeto de lei 1332/2007, de autoria do deputado federal Beto Mansur. Na sua justificativa, vê-se que seu objetivo era incentivar as pessoas a contribuir para a elucidação de crimes. “Nosso intuito é que a proposta receba a mesma atenção e prioridade da delação premiada. Trata-se, portanto, de um poderoso instrumento de combate ao crime“, escreveu o autor da proposição.

Assim, no tocante à legislação sobre o gênero informantes – sejam eles simples cidadãos noticiantes, ou funcionários reportantes, ou acusados colaboradores –, podemos ter dispositivos de incentivo, isto é, oferta de benefícios legais, como sanções premiais e recompensas em dinheiro ou outras vantagens (desempate em certames públicos, desconto de tributos etc); e dispositivos de proteção, estes para garantia da integridade física, da imagem, da honra e do emprego ou do meio de vida do informante.

Falta assim um elemento essencial na lei para que seja considerada legislação de proteção a whistleblowers, e está presente um elemento acidental desses programas (a recompensa pecuniária).

Todavia, há de se reconhecer que a Lei 13.608/2018 acabará servindo para também estimular o whistleblowing, devido à oferta de recompensas, e para tornar ainda mais explícito o dever estatal de proteção do anonimato de informantes, até que venha legislação adequada, como a preconizada pela Enccla 2016, em sua Ação 4, que visava elaborar “proposição de aprimoramento do sistema brasileiro de proteção e incentivo ao denunciante e whistleblower”.

A Lei 13.608/2018 trata de delação premiada?

Em sentido amplo, como autor de uma delatio criminis, o informante é um “delator”. Se recebe recompensa em dinheiro por isto, o informante beneficia-se de uma “delação premiada”. Mas não troquemos as bolas.O instituto agora regulado pela Lei 13.608/2018 não se confunde com a colaboração premiada da Lei 12.850/2013 nem com a delação premiada, prevista em várias leis esparsas, especialmente na Lei 9.807/1999.

Na Lei do Crime Organizado e na Lei de Proteção a Vítimas, Testemunhas e ao Réu Colaborador, há também um informante, mas este é coautor ou partícipe de crime, e sua pretensão é obter um benefício não pecuniário, normalmente imunidade, perdão judicial ou diminuição ou substituição de pena, por sua colaboração com a Justiça criminal.

Na Lei 13.608/2018, o informante é um terceiro, cidadão comum que tem ciência da prática de crime ou de ilícito não penal por outrem e pretende uma recompensa em dinheiro ou outra vantagem em troca de meras informações sobre a autoria da infração ou o paradeiro do seu autor. Este tipo de informante dificilmente participa da relação jurídica processual, sequer como depoente, pois sua contribuição não é prova.

Diferentemente do mero informante, o réu colaborador sempre toma parte da instrução probatória, seja como testemunha ou como interrogado. Seu depoimento, quando corroborado, serve como prova.

Problemas do modelo de informantes remunerados

Como os disque denúncia devem preservar a identidade do informante, uma questão de ampla defesa se coloca: os informantes poderão ter sua identidade revelada aos denunciados (réus) no curso da ação penal?

Pelo texto legal, em regra não. O art. 3º da Lei 13.608/2018 diz que “o informante que se identificar terá assegurado, pelo órgão que receber a denúncia, o sigilo dos seus dados“. O inciso II do art. 1º fala expressamente em garantia do anonimato.

A preservação da identidade de pessoas que se encaixem no gênero “informantes” está também na Lei 12.850/2013, quando aplicada ao colaborador (art. 5º, incisos I, II e V, e art. 18 da LCO).

A proibição de revelação da identidade de informantes é compatível com a Constituição, porque no art. 5º, inciso XIV, há a possibilidade de manter o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.Ademais, o informante não é testemunha, porque em regra não prestará depoimento no inquérito ou na ação penal. Sua informação não é prova, é só uma pista (“inteligência”), como outras tantas com as quais a Polícia e também o Ministério Público lidam todos os dias.

Todavia, se o informante for listado como testemunha na ação penal, sua identidade só pode ser mantida em sigilo se estiver submetida a medidas protetivas, nos termos da Lei 9.807/1999, que criou o programa de proteção a vítimas, testemunhas e ao réu colaborador.

No art. 4º, VI, da Lei 10.201/2001 também se assegura a não revelação da identidade do cidadão que liga para serviços telefônicos a fim de noticiar a autoria de um crime.

Todas as leis acima mencionadas contêm, portanto, dispositivos de proteção, insculpidos com base no legítimo interesse público de prevenir e punir crimes graves, libertar ou localizar vítimas desses crimes e levar seus autores à Justiça.

No entanto, o art. 5º, IV, da Constituição veda o anonimato. Como todo ato ilícito deve ser indenizado e como a denunciação caluniosa é crime, é de se discutir se um juiz pode determinar a revelação da identidade de informante, com base no inciso V do mesmo artigo constitucional.

Diante do princípio da proteção da confiança, a garantia do anonimato só poderá ser afastada por fundadas razões, se o informante agir de má-fé contra um inocente, causando-lhe dano. Mesmo assim, nem sempre será possível levantar o véu, porque, quanto ao grau de identificação, há dois tipos de informantes:

a) identificado: informante cuja identidade é conhecida pela Polícia ou por outro órgão estatal e cujos dados estão à disposição da autoridade. É o informante de identidade conhecida e sigilosa (não anônimo). Neste caso, havendo justa causa e hipótese legal de crime, o juiz competente pode levantar o signo, a pedido do Ministério Público ou do inocente prejudicado.
b) não identificado: o Estado ignora sua identidade e qualificação porque a informação foi realmente passada de forma anônima ou porque o receptor adotou sistema tecnológico para anonimizá-la, como um canal criptográfico num site, por exemplo. Nestes casos, é virtualmente impossível, sem investigação adequada e específica, descobrir a identidade do noticiante. É o informante de identidade ignorada (anônimo).
Outro aspecto dos programas de recompensa que provoca preocupação é a possibilidade de mecanismos como este gerarem pistas falsas para a Polícia contra pessoas inocentes ou contra pessoas inexistentes, o que pode trazer prejuízos a investigações de crimes graves e influenciar erros judiciários. Contudo, informes para despistar autoridades ou prejudicar inocentes podem existir sem lei alguma. Por isto mesmo, existem os crimes de calúnia (art. 138 do CP), denunciação caluniosa (art. 339 do CP e art. 19 da Lei 8.429/1992), falsa comunicação de crime (art. 340 do CP) e falsa delação (art. 19 da Lei 12.850/2013).

Por outro lado, a oferta de recompensas em dinheiro pode ser usada por criminosos para obterem vantagem adicional com os próprios crimes. Neste caso, eles poderão valer-se do anonimato, passando-se por informantes, para delatar comparsas em troca de recompensas pecuniárias indevidas. Nesta hipótese, o crime compensaria.

O destino de José Hugo

img_3013Os cartazes de recompensa espalhados em 1996 por Hildebrando Pascoal prometendo 50 mil reais a quem desse o paradeiro de José Hugo causaram alvoroço e rebuliço no submundo do crime. Cedo ou tarde, alguém reclamaria o butim.

Uma modernidade na época, o telefone informado pelo coronel tinha identificador de chamadas (“bina”) para diminuir trotes e permitir a localização do telefone do originador. Nada de anonimato, portanto.

Não demorou, a informação chegou. O prêmio seria recolhido por autoridades do sul do Piauí, entre eles policiais militares, que encontraram o foragido por aquelas bandas em janeiro de 1997, na comarca de Parnaguá, já na emenda com a Bahia.

Vinte e um anos atrás, os mercenários piauienses capturaram José Hugo, que foi passado à custódia do então deputado federal Hildebrando Pascoal e de seu assecla, Raimundo Alves de Oliveira, o “Raimundinho“. José Hugo, aquele que escapou de uma onça no mato, fora feito presa. Julgado com base na lei da selva e condenado à morte, foi degolado. Não teve advogado.

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