Cooperação internacional

As duas espécies de entrega no direito comparado

Na Constituição de 1988 ou nas leis processuais brasileiras ou no Estatuto do Estrangeiro, não há palavra sobre a “entrega”.

20/09/2014 às 06h46, Por Juvenal Martins

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Por Vladimir Aras

Instituto diverso da extradição, a entrega ingressou no cenário jurídico brasileiro com a promulgação do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, por meio do Decreto 4.388/2002.

Na Constituição de 1988 ou nas leis processuais brasileiras ou no Estatuto do Estrangeiro, não há palavra sobre a “entrega”.

Os projetos de lei 301/2007 e 4038/2008, ambos parados na Câmara dos Deputados, pretendem implementar no Brasil as regras do Estatuto de Roma de 1998 (ER), tratado do qual somos signatários.

A distinção entre extradição e entrega é um dos temas que deverá ser objeto da regra de implementação do ER.

A extradição é um procedimento de cooperação internacional entre Estados, de natureza compulsória, baseado em tratado ou promessa de reciprocidade, mediante o qual se pretende a captura e a rendição de uma pessoa foragida, para que se sujeite a uma investigação criminal, responda a um processo penal ou se submeta a execução de uma pena privativa de liberdade no território do Estado requerente.

Já a entrega é um procedimento de cooperação dos Estados-membros do Estatuto de Roma com o Tribunal Penal Internacional (TPI), também conhecido como International Criminal Court (ICC).

Contudo, como veremos, há dois tipos de entrega:

A entrega ao TPI

O Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede na Haia, Holanda, é a primeira corte internacional penal permanente.

Antes do TPI, só existiram cortes internacionais ad hoc, como o Tribunal Militar Internacional, que julgou os nazistas pelos crimes cometidos na Europa entre as décadas de 1930 e 1940, e o Tribunal Militar para o Extremo Oriente, que examinou fatos criminosos ocorridos no Japão, durante a 2ª Guerra Mundial.

Depois dessas duas cortes estabelecidas pelos combatentes vencedores para julgar os criminosos de guerra vencidos, foram criados ao longo da segunda metade do século XX o Tribunal Internacional para a Ex-Iugoslávia (ICTY, 1993, com sede em Haia), o Tribunal Especial para Serra Leoa (SCSL, 2002, com sede em Freetown), as Câmaras Extraordinárias nas Cortes do Camboja (ECCC, 2001, com sede em Phnom Pehn), o Tribunal Criminal Internacional para Ruanda (ICTR, 1994, com sede em Arusha) e o Tribunal Especial para o Líbano (STL, 2007, com sede em Leidschendam). Portanto, cinco cortes penais internacionais ad hoc ou ex post factum continuam em funcionamento em 2014.

Criado pelo Estatuto de Roma de 1998, do qual o Brasil é Parte (Decreto 4.388/2002), o TPI não se confunde com a Corte Internacional de Justiça (CIJ), que também funciona na Haia e julga questões jurídicas entre Estados soberanos. Conforme as regras do TPI, que julga crimes cometidos por pessoas naturais, cidadãos procurados pela prática de certos crimes internacionais devem ser entregues ao TPI para serem processados pela Promotoria Internacional (Prosecutor) e julgados por aquela Corte.

Brasileiros natos podem ser entregues ao TPI, caso cometam crimes sujeitos à jurisdição desse tribunal, isto é, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio, considerados delitos gravíssimos que afetam a comunidade internacional em seu conjunto. O crime de agressão, também previsto no tratado, só passará a existir em 1º de janeiro de 2017, caso a Emenda Kampala de 2010 finalmente entre em vigor.

Não custa repetir que extradição (extradiction) e entrega (surrender) são institutos distintos. O artigo 102 do Estatuto de Roma aclara a diferença. A extradição é medida de cooperação entre Estados diversos para aplicação do direito penal local (nacional), devido à prática de um crime da jurisdição nacional.

Já a entrega é mecanismo de cooperação entre um Estado e um tribunal internacional do qual esse mesmo Estado faz parte, para sujeição de uma pessoa a um processo penal nessa corte, para eventual aplicação do direito internacional penal (supranacional), decorrente de um tratado, que, no caso do TPI, é o Estatuto de Roma de 1998.

O TPI exerce jurisdição complementar às jurisdições nacionais, inclusive à brasileira, nas matérias de sua competência própria. Logo, neste sentido, é também um tribunal “brasileiro”. É, na verdade, uma corte supranacional criada com a concordância do nosso País, e ao qual o Brasil e seus cidadãos se submetem devido à regra pacta sunt servanda e por força do artigo 5º, §4º, da Constituição de 1988, dispositivo resultante da Emenda Constitucional 45/2004:

§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.

Por estes fatores, e considerando não haver qualquer restrição constitucional à entrega de brasileiros natos ou naturalizados, a reserva de nacionalidade, que se aplica aos pedidos de extradição (para outro Estado), não se estende aos pedidos de entrega ao TPI, como já bem o demonstrou o professor André de Carvalho Ramos.

Apesar de ter ratificado o Estatuto de Roma há mais de uma década, e embora o genocídio já esteja criminalizado entre nós (Lei 2.889/1956), o Brasil ainda não aprovou a legislação necessária para tipificar internamente os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, nem ratificou as duas Emendas de Kampala, de 2010. Tampouco o País aprovou normas para reger a cooperação com o Tribunal, especialmente no tocante à entrega e à execução penal, nem tornou-se parte da Convenção das Nações Unidas sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, de 1968.

Para suprir tais lacunas, tramitam na Câmara dos Deputados o PL 4038/2008 e o PL 301/2007, ao passo que o Acordo sobre Privilégios e Imunidades do TPI, conhecido por APIC, foi aprovado pelo Decreto Legislativo 291/2011 e ratificado pelo Brasil em 21 de dezembro de 2011.

O PL 4038, ainda em tramitação na Câmara dos Deputados, pretende dar ao Supremo Tribunal Federal a competência para decidir sobre a entrega ao TPI. Terá regras que distinguem extradição e entrega e que estabelecem a prevalência desta sobre aquela, e ainda regerá questões atinentes à entrega simplificada, mediante concordância expressa da pessoa procurada, e da entrega temporária, caso em que a pessoa transferida à jurisdição do TPI deverá ser restituída ao Brasil para o cumprimento de sua eventual condenação.

Desde a entrada em vigor do ER/1998 para o Brasil, o STF só recebeu um pedido de entrega ao TPI, consubstanciado na PET 4625, para a rendição do ditador sudanês Omar Al-Bashir. A relataria era do ministro Celso de Mello, que em sua decisão inicial doutrinou sobre o instituto da entrega. Um dos temas a discutir será justamente a existência de competência originária do STF para decidir sobre a entrega.

A entrega no Mercosul

O Acordo sobre Mandado Mercosul de Captura e Procedimentos de entrega entre os Estados Partes do Mercosul e Estados Associados, firmado em Foz do Iguaçu em 2010, foi aprovado pela Decisão n. 48/2010 do Conselho do Mercado Comum. Com isto foi criado o Mandado MERCOSUL de Captura (MMC), de que cuidei no post “Procurado no Mercosul“.

Baseado no princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais, o MMC substituirá no Mercosul os procedimentos de extradição (art. 3º, §4º) para crimes mais graves, como corrupção, delinquência organizada, tráfico de drogas e terrorismo. Uma ordem judicial emitida por autoridade judiciária de uma das Partes (Parte emissora) do acordo, poderá ser cumprida diretamente pelas autoridades judiciárias da outra Parte (Parte executora), para prisão e entrega de uma pessoa procurada para ser processada por um suposto crime, ou para execução de uma pena privativa de liberdade.

Segundo o artigo 5º do Acordo de Foz do Iguaçu de 2010, a autoridade judiciária do Estado requerido só pode recusar-se a cumprir o MMC em situações restritas. A nacionalidade da pessoa reclamada não poderá ser invocada para denegar a entrega, salvo disposição constitucional em contrário.

Caso a exceção de nacionalidade seja invocada, cabe ao Estado requerido (Parte executora) julgar a pessoa reclamada e manter a outra Parte informada acerca do julgamento e remeter cópia da sentença, se for o caso, segundo a regra aut dedere aut iudicare.

Não havendo vedação constitucional à entrega de nacionais, o MMC poderá abranger brasileiros e estrangeiros foragidos e que sejam encontrados e presos em território nacional. Ao menos, a legislação regulamentadora haverá de considerar a possibilidade de entrega temporária de nacionais, para processo perante o juiz natural no Estado Parte requerente (emissor) e posterior cumprimento de pena no Brasil (executor).

O modelo preconizado para o Mercosul é semelhante ao já vigente no continente europeu, onde, desde 2004, em função do mandado europeu de captura, conhecido por European Arrest Warrant (EAW), cidadãos dos países do bloco podem ser presos e entregues para julgamento no Estado emissor, sempre que presentes os requisitos da Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002. Assim, o EAW substitui o sistema de extradição no continente, impondo a cada autoridade judiciária nacional (parte executora) o reconhecimento do pedido de entrega de uma pessoa apresentado por uma autoridade judiciária de outro Estado-Membro (parte emissora), para que esta submeta-se a uma ação penal ou ao cumprimento de pena ou de medida de segurança privativa de liberdade.

No âmbito do EAW, o tradicional princípio da dupla incriminação, sempre exigível na extradição, pode ser dispensado para os crimes de terrorismo, tráfico humano, corrupção, participação em organização criminosa, falsificação de moeda, homicídio, racismo, xenofobia, estupro, tráfico de veículos roubados e fraude, incluindo a fraude contra os interesses financeiros das Comunidades Europeias, se na Parte emissora tais infrações forem punidas com sanção privativa de liberdade não inferior a 3 anos. Nos demais casos, aplica-se a regra da dupla tipicidade.

O Protocolo de Foz do Iguaçu de 2010 coordena-se com o Acordo Quadro sobre Cooperação em Matéria de Segurança Regional entre os Estados Partes do Mercosul, a República da Bolívia, a República do Chile, a República do Equador, a República do Peru e a República Bolivariana da Venezuela, cujo artigo 12 regula a perseguição de criminosos no Mercosul.

Firmado em Córdoba em 2006 por Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, tal tratado estabelece que as polícias e as forças de segurança das Partes “que, em seu próprio território, persigam uma ou mais pessoas que, para iludir a ação da autoridade, traspassarem o limite fronteiriço, poderão entrar no território da outra Parte somente para informar e solicitar à autoridade policial mais próxima, ou a quem exerça tal função, o auxílio imediato no caso.” (Perseguição de Criminosos, art. 12 do Anexo).

Já ratificados por outros países do bloco, mas não pelo Brasil, os acordos de Córdoba e de Foz do Iguaçu ainda não estão vigentes no Mercosul enquanto escrevo.

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